"Não sai mais da cama! O problema é depressão?" (Parte 1)

O Sr. AB, 82 anos, maquinista de trem aposentado, viúvo há 6 meses, consultou-se no ambulatório em 9 de março de 2017 trazido pelo filho.

O paciente era hipertenso e diabético há vários anos, mas sempre cuidou bem da saúde; seguia a dieta, fazia exercícios, não fumava, tinha um peso adequado. Utilizava de manhã metformina 500 mg e enalapril 20 mg. O acompanhamento no centro de saúde perto de casa era muito bom e ele estava sempre bem controlado: PA 120/80, hemoglobina glicada <7,5%, colesterol LDL < 100 mg/dl, microalbuminuria baixa, exame oftalmológico periódico, cuidados adequados com os pés.

Então aconteceu uma tragédia: sua esposa, companheira há 60 anos, faleceu subitamente com um acidente vascular cerebral hemorrágico. Com a vida fora dos trilhos, o Sr. AB ficou inconsolável. Durante vários dias ficou angustiado, chorando durante o dia, falando em morrer para reencontrar a esposa, e sem conseguir dormir de noite. Como não estava se alimentando, perdendo peso e a pressão subiu um pouco, o médico suspendeu a metformina e passou o enalapril para dois comprimidos ao dia. Uma auxiliar de enfermagem passou a visitá-lo em casa diariamente para conferir a glicemia capilar e uma psicóloga do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) também começou a visitá-lo.

Duas semanas se passaram. O Sr. AB já quase não chorava, voltou dormir de noite, a se alimentar um pouquinho melhor e parou de perder peso. Mas continuava desanimado. Não cuidava mais do jardim, não assistia TV na sala, não lia o jornal na copa, não saía mais de casa para nada. Passava o dia inteiro na cama, queixando-se que estava sem energia. A glicemia capilar pouco mudou, e a psicóloga discutiu o caso com a equipe. O médico resolveu então iniciar um antidepressivo; prescreveu mirtazapina 30 mg de noite.

Dois meses se passaram e nada; apesar de ter restabelecido o sono e o apetite, o Sr. AB realmente desistira de todas as atividades. Continuava se sentindo fraco e nas raras vezes em que saia da cama para receber uma visita na sala, logo queria voltar para o quarto. Com o travesseiro como companheiro, ele se lembrava dos bons momentos com a esposa e passava os dias contando casos para quem estivesse disposto a ouvi-lo.


Você tem ideia do que poderia estar acontecendo? Que tal associar um antidepressivo com efeito sinérgico à mirtazapina, como o citalopram? Ou seria o caso de forçá-lo a sair de casa um pouco para cuidar do jardim e fazer caminhadas? Já adianto: passado algum tempo, o Sr. AB voltou à vida normal.